19.outubro.2009

Depois de muito tempo ele tomou coragem. Tirou o pano fedido de cima da tela do computador. Limpou as letras sujas do teclado e esticou as mãos. Devagar ele abriu o peito deixando que as letras escorressem pela ponta dos dedos:

– Eu ainda penso em você. Por mais que eu finja, fuja e fale que não, ainda tem um pouquinho de você na mesa do café, naquele copo que você gostava, sabe? Ainda tem um pouquinho de você na tela que eu pinto. No lado mais fundo do colchão, não que você seja gorda…. Ainda tem você. No sonho, no frio, no medo. No desejo. Tem você em cabelos no chão do meu banheiro. Tem você no barulho do chaveiro abrindo a porta. Tem você no cheiro da minha camisa. Tem gestos seus nos meus. No meu gosto. Na minha língua. Então se tiver desistido daquele sonho besta, se já tiver vivido tudo o que queria, se já quebrou a cara, chorou, amou, se já se deu conta que aquilo que procura não existe, se existe é só de mentirinha. Enfim, se já estiver pronta. Por favor me procure, assim rapidinho, só pra eu ter certeza que aquela que deixou os cabelos no meu travesseiro já não é a mesma, que aquela que deixou os cabelos talvez tenha sido inventada por mim e que talvez nunca tenha existido. Me procure, pra que eu possa também ser outro.

Terminou de escrever e ficou ali, pensando, durante 20 minutos se devia ou não devia mandar o email. 20 longos minutos que criaram milhares de respostas possíveis, tentou também imaginar o que ela pensaria ao ler o recado, mas isso era impossível. Com um frio no peito e a graça do desafio esticou novamente as mãos. E como seus dedos estavam ali tão perto do ENTER, apertou, como quem desconhece o porque.


Quecaquomo

16.outubro.2009

Qualquer coisa

Comum comprada

Ou achada

Qualquer pornochancada

Aguada

Qualquer murmúrio

ou muro

Não há qualquer que dure.

Qualquer momento mórbido,

Qualquer monumento.

Qualquermessi

Amigo ou vento.

Qualquer duvida durável.

Qualquer coisa estável.

Não há.

Tudo está a se constru.ir


Assim foi

8.outubro.2009

Uma linda menininha de olhos claros, daquelas com cara de sapeca e que encanta qualquer adulto, pula de pé em pé. Seus cabelos acompanham o saltitar. Em sua mão esquerda ela puxa uma negra, como se fosse sua. A pequena nunca foi educada pelos pais, e admira muito a negra que executa todos os seus pedidos. Mas o dia de hoje cheira a tragédia:

– Parada! –gritou a pequena branquinha-

Ela parou.

– Fingi de morta!

Ela fingiu.

– Não respira! Sem respirar!

Ela prendeu a respiração. A menina ria muito e na sua inocência achava que a negra também se divertia.

– Se você fosse branca já ia estar roxinha.  – ria a branquinha. A negra lá, estendida no chão-

– Cansei dessa brincadeira Dalva! Dalva! Daaaalva!

A menina subiu em cima da negra.

– Quero brincar de cavalo! Cavalo. Dalva? Dalva?

A menina cutucou a negra. Já um pouco assustada.

– Dalva? Pode respirar. Dalva!

A menina colocou a orelha no peito da negra para ouvir seu coração -ela não tinha preconceitos, nunca teve-.

– Bate coração! Bate coração da Dalva! –mas ele já não batia mais-

A pequena correu para o pai, chorando muito.

– Eu matei a negra! Pai, eu matei a negra! –na frente do pai a pequena nunca dizia Dalva, era negra-  Mandei ela parar de respirar!!

– Papai compra outra pra você.

– Mas pai, eu matei!

– Não matou filinha…

– Mas ela fazia tudo o que eu mandava!

A pequena correu. Foi chorar num canto enquanto os bombeiros colocavam o corpo no saco preto.

Dois dias e a menina ainda não tinha superado a crise. O pai tentou arrumar outra negra, mas a pequena recusou. Então tentou conversar com sua filha –esse foi o segundo ensinamento do pai- :

– Minha pequena. Você não matou ela.

– Mas pai…

– Não tem mas. Ela não fazia tudo o que você queria. Tudo bem, as vezes fazia, mas lá no fundo, no seu intimo, tudo o que ela queria era desobedecer você. Obedecia por obrigação. Quase sempre.

– Não é. Ela gostava de mim. Eu sei que gostava!

– Mas filinha, entende o que o papai ta te falando. Ela nunca ia deixar de respirar porque você mandou. Isso não tem cabimento. As vezes ela fazia as coisas, mas por dentro discordava de você.

– Então por que ela fazia?

– Porque assim que é… O papai vai comprar outra você. Uma bem legal, e mais jovem. Branca dessa vez!

– Eu gosto das velhas…

– O papai prefere uma novinha, pode ser?


Olodumor

1.outubro.2009

quem sabe com sorte

e como consolo

da insônia

a morte só te corte

durante o sono;

e em uníssono

num gem.ido solo

entre o sonho

e o solo,

cê.parta o céu

rumo sol.

ao som dum sopro

de Olodum.

.

Só, sob o mote

da morte.

ninguém escapa a sorte.